sexta-feira, 15 de maio de 2020

Correio Terapêutico - segunda carta

Belo Horizonte, numa arejada manhã de maio de 2020.

Prezada(o),

Espero que esta carta te encontre bem.

A COVID-19, doença que  nos traz tantos desafios no momento, notadamente é  conhecida pelos danos causados ao sistema respiratório. Isso me fez querer refletir na carta de hoje sobre a importância  desse ato tão  vital e que, não raras vezes,  negligenciamos (mesmo quando não há a interferência de qualquer vírus): respirar.

Começo ressaltando que o sentido  envolvido com o ato de respirar, o olfato,  pode ter muita influência sobre nossa percepção do mundo.  Podemos ser muito impactados pelos cheiros e nossa história de vida muitas vezes é marcada pelos aromas. No meu caso: o aroma que vem da embalagem de “Leite de Rosas”  me faz lembrar  de minha bisavó,  mulher sábia e forte; leitora  voraz que sou, sempre noto o cheiro que os livros (novos ou velhos) podem ter; após  um dia exaustivo, assar um bolo em casa e sentir o ar doméstico impregnado de doçuras vindas do forno me traz um conforto instantâneo; ao abraçar meu filho ao longo do seu crescimento  fui sentindo  seu cheiro mudar ao longo  dos anos, começando  com sabonete de bebê,  passando  pelo  cheiro de tutti-frutti do chiclete  e da grama do jogo de futebol até a loção  pós-barba nos dias atuais... E quem viu o filme “Perfume de Mulher”, onde o personagem Frank, cego, identificava as pessoas, sobretudo as mulheres, pelo cheiro?  Há, inclusive, a aromaterapia, que é uma técnica que usa óleos essenciais para o cuidado físico e emocional. Enfim, olfato e emoções se interligam.

 

Respirar  é  nosso primeiro ato de resistência: vir ao mundo é  ter que respirar. Enquanto respiramos, vivemos. O ar é vital, repito. Mas estamos respirando bem? Humanos, animais e plantas  vivem de uma melhor forma se usufruem de ar com qualidade, sem poluição (um  dos efeitos positivos do confinamento atual, registrado  em várias partes do mundo, é  a diminuição dos índices  de poluição, a ponto de se conseguir avistar o Himalaia em regiões onde a cordilheira esteve encoberta por décadas pelo ar carregado de impurezas).  Belo  Horizonte já foi reconhecida pela qualidade  de seu ar e clima, atraindo, assim, pessoas que vinham passar temporadas em seus sanatórios para se tratarem da tuberculose. Isso ocorreu no início do século passado, antes de medicamentos mais eficazes para a doença chegarem ao Brasil por volta de 1950 (até então, as pessoas com tuberculose eram obrigadas a se afastarem das pessoas queridas, pois a tosse gerada pode propagar a doença, o que muito nos lembra do que tem ocorrido no nosso momento atual). Até para os objetos o ar é  importante: temos que por roupas para respirarem de quando em vez, arejar a casa faz parte da sua manutenção  adequada...

 

Como psicóloga,  vejo no ato de respirar uma importante  pista sobre a saúde emocional dos pacientes: angústia  pode trazer o aperto no peito, como se o ar não  fluísse; ansiedade pode não  deixar o ar entrar o suficientemente;  a cólera  pode acelerar  por demais a respiração... Não respirar adequadamente traz impactos em nosso físico, mas também em nossa saúde mental. 

 

Então, através  da carta de hoje quero te incentivar a colocar mais consciência sobre teu ato de respirar.  Sugiro   que, ao terminar a leitura, faça  algo simples:  concentre em tua respiração  por um ou dois minutos. Não  precisa tentar  controlá-la, apenas observar:  como o ar entra e sai? Qual a temperatura que sente no ar que puxa e no ar que solta? Tua  respiração  está  em que ritmo: devagar ou acelerada? Está superficial  ou mais profunda? 

 

Essa prática  simples  pode ser feita em qualquer momento em que se sinta a necessidade de fazer uma pausa para tentar relaxar e pode ser  o ponto  de partida para um exercício de atenção  plena, que vários estudos indicam como benéfico para a saúde emocional. Nas próximas cartas, trarei mais um pouco de sugestões de relaxamento através da consciência respiratória.

 

Se achar que tuas emoções  estejam interferindo negativa e rotineiramente  no teu ato de respirar, pode ser o caso de buscar ajuda profissional.  Já há relatos que pacientes  chegaram ao hospital suspeitando que estivessem com sintomas da COVID-19, mas, na verdade, estavam com crises de ansiedade. Penso que, na psicoterapia, muitas vezes  nós  psicólogos também  precisamos  usar técnicas intensivas para ajudar os pacientes  a respirarem melhor, e isso passa pelo trato das  emoções, aqui não com o uso de respiradores artificiais, mas através da empatia e escuta qualificada.

 

Espero  que minhas palavras de hoje tenham sido um respiro no teu cotidiano. Continuo aberta  para acolher quem desejar me escrever.

 

Gentilmente,  

Luciane Couto 

 

PS: trecho do poema “Inundar de Infância”, de Mia Couto:

“Dentro de mim

o universo se dissolveu

e um respirar de céu

em meu peito se inundou”. 

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